terça-feira, 17 de agosto de 2010

Para a mulher real, um real poema...

Invocação a mulher única

Tu, pássaro – mulher de leite! Tu que carrega as lívidas glândulas do amor acima do sexo infinito
Tu, que perpetuas o desespero humano – alma desolada da noite sobre o frio das águas – tu
Tédio escuro, mal da vida – fonte! Jamais... jamais... (que o poema receba minhas lágrimas!...)
Dei-te um mistério: um ídolo, uma catedral, uma prece são menos reais que três partes sangrentas do meu coração em martírio
E hoje meu corpo nu estilhaça os espelhos e o mal está em mim e a minha carne é aguda
E eu trago crucificadas mil mulheres cuja santidade dependeria apenas de um gesto teu sobre o espaço em harmonia.
Pobre eu! Sinto-me tão tu mesma, meu belo cisne, minha vida, minha bela, bela graça, fêmea
Feita de diamantes e cuja postura lembra um templo adormecido numa velha madrugada de lua...
A minha ascendência de heróis: assassinos, ladrões, estupradores, onanistas – negações do bem: o Antigo Testamento! – a minha descendência
De poetas: puros, selvagens, líricos, inocentes: o Novo Testamento – afirmações do bem: duvida
(Duvida mais fácil que a fé, mais transigente que a esperança, mais oportuna que a caridade
Duvida, madrasta do gênio) – tudo, tudo se esboroa ante a visão do teu vento púbere, Alma do Pai, coração do filho, carne do Santo Espírito, amém!
Tu, criança! Cujo olhar faz crescer os brotos dos sulcos da terra - perpetuação do êxtase
Criatura, mais que nenhuma outra, porque nasceste fecunda pelos astros - mulher!
Mulher que eu amo, criança que eu amo, ser ignorado , essência perdida num ar de inverno...
Não me deixes morrer!... eu, homem - fruto da terra – eu, homem - fruto do pensamento – eu, homem – fruto da carne
Eu carrego o peso da tara e me rejubilo, eu que carrego os sinos do sêmen que se rejubilam da carne
Eu que sou um grito perdido no primeiro vazio à procura de um Deus que é o vazio ele mesmo!
Não me deixes partir... – as viagens remontam à vida!... e por que eu partiria se és a vida, se há em ti a viagem muito pura
A viagem do amor que não volta que me faz sonhar do mais funda da minha poesia
Com uma grande extensão de corpo e alma – uma montanha imensa e desdobrada – por onde eu iria caminhando
Até o âmago e riria e beberia da fonte mais doce e me enlanguesceria e dormiria eternamente como uma múmia egípcia
No invólucro da Natureza que és tu mesma, coberta da tua pele que é a minha própria – oh mulher, espécie adorável da poesia eterna!


Vinicius de Moraes