quinta-feira, 21 de julho de 2011

Confissões de um docente!!!

Obituário

Vinte e seis anos, dez meses e vinte e nove dias. È a idade que eu tinha quando peguei o vinte e dois que era do meu pai trancado na gaveta do criado mudo, no quarto, fui até o banheiro, sentei sobre o vaso, enfiei o cano dentro da minha boca e segurei com as duas mãos com o dedo polegar sobre o gatilho e puxei.
Me acharam depois de um dia, dia e meio. Dizem que parte do meu cérebro ficou grudada, secando no azulejo. Não lembro.
Por que fiz isso? Tava de saco cheio, entende? Não tava mais querendo brigar com o mundo, ser hipócrita, fingir que eu era importante. Tapar hemorragia com bandeidi. Ter que acordar todo dia, perceber a sua cara amassada no espelho, ver que você só ta envelhecendo, os cabelos caindo, ficando brocha, gordo, papudo, e o que fez da vida? Você olha pra trás e, o que aconteceu? Nada. Nenhum fato, alguma coisa que realmente marcasse, alguém que fizesse a diferença. Nada. Foi por isso.
Naquele dia acordei decidido. Não foi nada de cabeça quente. Já estava pensando sobre o assunto há muito tempo, já tinha feito vários ensaios: faca sobre o pulso, coquetel de remédios, veneno. Mas ficava só na preparação, nunca consumava o fato. Era assim toda vez que acordava as quatro, cinco da madruga, pensando na escola, nas mudanças, no meu trampo e no que eu poderia fazer. A cabeça girando, parecendo um quebra cabeças, um labirinto. Eu entrando na nóia, ficando depressivo. Por nada já chorava. Com medo de pegar nos livros, estudar: medo de ir pra escola. A única vontade era de entrar no carro e sumir. Pegar uma auto-estrada dessas ai e sumir. Deixa tudo pra trás, feito poeira.
Já procurei tratamento, já fui na igreja, psicólogo particular. Já fui até no quinto andar do Servidor. O psiquiatra la, com uma cara de bunda, fingindo que ta me escutando, Depois passa uma bosta duma receita qualquer, me da uns dias de licença e próximo! Tá limpo. Tô fora, meu irmão. Se me chapar de remédio é sanidade eu quero é ficar louco. E limpo.
Se for a coisa certa? Cara, todo dia morre não sei quantas pessoas no mundo: AIDS na África, bomba no Iraque, conflitos no Quênia; adolescente disparando a esmo dento de colégio nos EUA, assalto no jardins, acerto de conta na Perifa, morador queimado no Glicério. Vocês interrogam todo esse pessoal, perguntando se o que aconteceu com eles foi certo? Qual o problema do suicídio? Principalmente agora que eu to morto, pra que vocês querem estudar o meu raciocínio? É tão difícil aceitar que esse mundo ta podre, que tá tudo errado, tudo pelo avesso? Que a vida não é o que se pinta nas novelas da televisão que escola não é o que aparece na Malhação? Que tem gente que não quer mais continuar fazendo esse jogo. E se foi só isso, eu quis decretar o meu fim. Posso? Tenho esse direito?
Errado é essa molecada na rua. Século vinte e um e você encontra pessoas sem um teto pra morar, morrendo por falta de atendimento nos corredores dos hospitais. Todo dia alguém bater na sua porta, tocar sua campainha: Tem isso? Tem aquilo? As pessoas se humilhando. Ver marmanjo ai, de vinte, trinta anos, uma puta disposição, uma puta vontade e não tem emprego. Não tem qualificação, não tem oportunidade. Pai de família chorando, não tendo um tento pra comprá o leite pro filho. Isso é errado. Agora, eu me dar um tiro_ Eu machuquei alguém? Feri alguma pessoa? Não parei o transito, não atrasei o lado de nenhum trabalhador. Nem tiveram que fechar shopping, banco, ninguém decretou luto. Só minha escola. Mas ai a molecada, no fundo, até que gostou, ficou um pouquinho feliz.
Você. Você acha que eu não pensei nos meus alunos?
Lógico que pensei. Alias, só penso neles. Eles são a minha preocupação principal. Mas eu cansei. Cê faz um trampo sério e não é reconhecido; trabalha, trabalha e, no fim do mês, uma merreca de salário. Vê um monte de gente enrolando, falando bobagem abusando do posto, tratando mal a molecada e curtindo uma com a sua cara de otário. Ve o governador na TV mostrar uma escola que não existe e tem que ficar calado. Ver a Secretaria de Educação, que não conhece a realidade, querendo te ensiná o beabá e tem que ficar calado. A Super Nanny, cara, dizendo como você tem que educar o seu filho e tem que, ah, na boa né mermão? Chega. Minha cabeça explodiu só isso.
E não me arrependo não. Não pedi pra nascer, tá ligado?
Me jogaram nesse mundo fudido sem me perguntar o que eu achava disso. Tão acabando com o mundo, aquecimento global, desmatamento, poluição, consumo e ninguém me pergunta o que eu acho disso. Eu me dou um tiro e... por que cê fez isso?
A questão é, por que não faz? Fica ai como um Zé se enganando, se acabando, dando milho. Ah, não me critiquem. Se vocês querem continuar sangrando, devagar, se iludindo, tudo bem. Mas eu desci do barco.
Assumi o meu rumo. Acho melhor vocês fazerem o mesmo.
Uma hora ou outra ele vai afundar mesmo.

Texto extraído do livro: “Te pego lá fora” de Rodrigo Ciríaco
Editora Toró, 2006, São Paulo

2 comentários:

  1. Ótimo. Adorei o texto, porém [e para variar], não acho o suicídio a melhor forma para acabar com os problemas!

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  2. Muito louco este texto. Porém, interessante.

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